domingo, 29 de novembro de 2015

Salt of the earth


"But the type of people that I came from, I never saw better! In the whole of the world! I mean, the Presidents, the prime minister, I never met anyone half as nice as some of the people I know from Liverpool who are nothing, who do nothing. They're not important or famous. But they are smart, like my dad was smart. I mean, people who can just cut through problems like a hot knife through butter. The kind of people you need in life. Salt of the earth."

(Paul McCartney)

"It’s such a grey day"


Mike (DeNiro) retorna para casa após a guerra. A certa altura decide voltar ao Vietnã na tentativa de resgatar Nick (Walken), que permaneceu por lá como jogador de roleta-russa. Sim, ele crê que Nick sobreviveu durante esse tempo a consecutivas sessões do jogo assassino, apesar de isso ser mais do que improvável.

No Vietnã, Mike o encontra, e se depara com o que já estava anunciado, mas que ele não quisera ou não pudera acreditar: que há um corpo, que esse corpo tem a aparência de seu amigo, mas que aquele é um corpo esvaziado de tudo que o constituía como um homem. O que ele vê movimentando-se é uma sombra, um fantasma.

Quem sabe no fundo ainda havia algum resquício de memória; quem sabe se não veio mesmo à cabeça de Nick, no último momento, as árvores da Pensilvânia, assim como um galho quebrado lembrou o irmão em O Intendente Sansho de sua vida antes da escravidão, ou como versos de Dante fizeram o Primo Lévi pensar em humanidade mesmo dentro de um campo de concentração nazista.

O fato é que as regras da roleta-russa são cruéis demais no modo como esgotam as probabilidades para que a viagem de Mike não estivesse fadada ao fracasso. Foi preciso que ele fizesse a travessia por uma Saigon em chamas, passando pelo próprio rio Styx em direção a Hades, para, enfim, ter o corpo do amigo em seus braços.

Em O Franco-Atirador constantemente transitamos entre o concreto e o abstrato. Assim como o motivo da roleta-russa concentra a violência da espera e a iminência da morte numa guerra, aqui, o intervalo até o reencontro coincide com o tempo que um homem levou numa jornada mental em busca de superar a negação e confrontar seus medos.

Junto com ele, o próprio filme se conduz por esse trajeto enquanto reflexão sobre o estado do país. Quando, depois do enterro de Nick, os amigos se reúnem e há entre eles um silêncio brutal, quem o rompe, sintomaticamente, é a personagem que permanecera por muito tempo sem falar. “It’s such a grey day”, ela diz, palavras que não aliviam a dor, mas que talvez permitam aos outros começar a encarar seus traumas de frente.

sábado, 28 de novembro de 2015


"Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela, não me salvo a mim." (Ortega y Gasset)

Fallen Angel

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Mekas


sexta-feira, 20 de novembro de 2015

[...]

quinta-feira, 19 de novembro de 2015


Relembrai vossa origem, vossa essência:
Vós não fostes criados para bichos,
e sim para o valor e a experiência.

(Dante, citado em "É isto um homem?" de Primo Levi)

Borges, Resnais e a Vertigem da Descrição


Para um cinéfilo, o contato com a obra de Jorge Luís Borges é sempre estimulante, principalmente pelo forte teor imagético que ela guarda. O escritor argentino possui uma peculiar capacidade de elaborar descrições minuciosas de fatos históricos (apuráveis ou não), objetos, seres e lugares os mais insólitos e fabulosos, sem por isso tornar-se hermético.

Aquele leitor, então familiarizado com a linguagem cinematográfica, precisa não raramente extrapolar o seu prévio conhecimento, para poder mergulhar naquilo que Borges lhe tenta transmitir. Foi o meu caso, em particular, ao ler pela primeira vez o famoso conto O Aleph. No momento em que o protagonista descobre o tal objeto fantasioso, uma esfera negra cujo diâmetro mede dois ou três centímetros, o autor inicia uma longa enumeração das visões que essa esfera proporcionou ao personagem: “Cada coisa (a lua do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu claramente a via de todos os pontos do universo”. Minha reação foi afirmar que a projeção a qual o personagem teve acesso jamais poderia ser uma projeção cinematográfica comum, pois, eu pensei, como poderia um filme, mesmo se o quisesse, abster-se da eleição de um ponto de vista na constituição de sua mise en scène a fim de compreender, por contrário, essa visão totalizante das coisas, do universo? Da minha parte, deparei-me com uma limitação do cinema, enquanto Borges mais sabiamente parecia visualizar uma extrapolação dos seus fins…

O cinema ainda não foi inventado!”, exclamara Bazin, que também afirmava que o cinema possuía uma origem mítica, a qual já se deixava entrever-se ao longo da história pelas técnicas de reprodução do século XIX, como a fotografia e o fonógrafo. Tratar-se-ia, pois, do mito do realismo integral, da recriação do mundo à sua própria imagem, uma imagem na qual não era ponderada a hipótese da liberdade de interpretação do artista nem a irreversibilidade do tempo. Para Bazin, o cinema é um fenômeno idealista e que sempre existiu na imaginação dos homens, pois um cinema mental (no conceito de Ítalo Calvino) nunca cessou de projetar imagens em nossa tela interior, inclusive (sobretudo?) a partir da literatura. No entanto, assim como o homem precisou esperar pelo avião para poder voar como Ícaro, a vontade de reproduzir a realidade tão próxima de sua aparência material somente pôde ser viabilizada à medida que a técnica evoluiu.

A evolução do cinema, portanto, nos termos previamente trazidos pelo mito do cinema total, não está finalizada, pois eternamente ele evoluirá rumo a um realismo maior. O que diríamos se no futuro for possível de fato a imersão do espectador nos filmes, de forma a superar as recentes tentativas difundidas pelo uso da tecnologia 3D? Será que um dia experimentaremos sensações olfativas e táteis verídicas e constantes dentro de uma sala de projeção? Em Borges, um dos seus personagens mais fascinantes vive isso intensamente, como ninguém jamais viverá: ele se chama Funes, o Memorioso, porque após sofrer uma queda de cavalo ficou paralítico, mas em compensação adquiriu memória e percepção infalíveis, que o fazem capaz de não só poder reconstituir mentalmente todos os sonhos, entresonhos e dias inteiros (no que lhe requer exatamente dias inteiros) como para cada imagem dessas ligar sensações musculares e térmicas.

Mais uma vez a descrição literária de Borges para um fenômeno extraordinário nos remete a qualidades envolvidas com o dispositivo cinematográfico, tanto no texto (a experiência, a visibilidade, a percepção) quanto no subtexto (a memória, uma constante em seu trabalho). Não se trata aqui de dizer que Borges procurava relacionar-se com as teorias bazinianas, mas de todo modo admitir que enquanto o cinema total, ideal ou platônico visa a uma reprodução fidelíssima da realidade a fim de experimentá-la melhor (pois é esta a finalidade, já que se se quisesse apenas a realidade, bastaria olhar pela janela), Funes já a possui. Noutras palavras: o cinema conforme os apontamentos teóricos do francês encontra Borges na busca por meios para descrever o infinito.

Outra de suas tentativas conhecidas é o conto A Biblioteca de Babel em cuja primeira frase encontra-se enunciada a questão em pauta: “O universo (que outros chamam a Biblioteca) é composto de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos postos de ventilação no meio, cercados por balaustradas baixíssimas”. Nesse trecho de abertura, Borges equivale todo o universo a uma Biblioteca, cujas características ele insistirá em descrever ao longo do texto, com um estilo que parte da enumeração e de uma irônica objetividade para fascinar-nos pelo “encanto exótico de um outro pensamento”, mas que na realidade evidencia “o limite do nosso: a impossibilidade de pensar aquilo”, como já afirmou Foucault.

Ao recurso de estilo aplicado nessa procura de descrever o imponderável — empregado por Borges nesse conto, porém igualmente presente nos demais contos citados anteriormente e em outros exemplares de sua extensa obra — nomeamos de “vertigem da descrição”. Nesse sentido, é preciso que definamos a que noção se refere o emprego de “vertigem” e a qual funcionalidade servirá a “descrição”. Normalmente, a vertigem é tomada no seu sentido clínico, ou seja, como um sintoma que envolve tontura e pode provocar náuseas, vômitos, ilusões de movimento etc., e cujas causas podem se associar a distúrbios nos ouvidos, na pressão arterial, no sistema nervoso. No entanto, é evidente que não adotaremos vertigem no seu sentido literal, mas sim como uma metáfora hiperbólica para um tipo de experiência estética.

A vertigem interessa-nos não pelas conseqüências que provoca, mas pelo efeito de vertigem. A fim de descrevê-lo, tomemos como ilustração a cena de Um Corpo que Cai, em que o personagem de James Stewart, ao subir uma escadaria, sente a vertigem de uma provável queda. Stewart está parado no alto da escada, mas visualiza o fim do vão, o que o faz sentir a vertigem. O movimento de câmera empregado por Alfred Hitchcock é expressivo: ao mesmo tempo em que há um zoom in para o fundo do quadro, há um movimento de recuo do aparelho para onde se infere que está Stewart. Isso é repetido algumas vezes.


Talvez o que justifique a extrema funcionalidade desses recursos no filme de Hitchcock é que a vertigem aparece como um sintoma ambivalente: agem nela, simultaneamente e com a mesma intensidade, a sensação de afastamento de um ponto e a sensação de permanência nele próprio. O sujeito, portanto, é atingido por um paradoxo: ao mesmo tempo em que sente que avança rumo ao ponto final, ele interage com a repetição, pois está fixo num ponto de origem. Dessa maneira, ficam assim ilustradas as principais características do efeito de vertigem: alterações na percepção do espaço e da temporalidade (a repetição do artifício faz parecer que a duração da cena foi dilatada).

Tanto Borges quanto Alain Resnais são familiarizados com este recurso que pode causar a vertigem: a repetição. No entanto, interessam-nos aqui os momentos em que a repetição vem aliada à descrição, como no caso de A Biblioteca de Babel, para Borges, e Toda a Memória do Mundo (1956), para Resnais. Isso favorece casos que não sejam de repetição como reprodução do mesmo, mas sim de uma repetição diferencial, aquela onde se notabiliza o novo a cada informação despejada.

As duas obras têm uma semelhança evidente: Borges analisa a chamada Biblioteca Universal; Resnais faz um passeio pela Biblioteca Nacional Francesa. Os relatos de ambos apontam para a grandiosidade dos edifícios. O primeiro tende imediatamente a assimilá-la ao Universo: a origem dela e do tempo são segredos omitidos aos homens; contudo, na biblioteca, numa ordem secreta (fala-se do “catálogo dos catálogos”, do qual não se tem notícias que alguém já o leu), num número restrito de estantes por paredes, escritos com uma obsessiva quantidade de linhas por páginas, e por um número médio de letras por linhas, figuram todos os livros que se possam imaginar, afirma o narrador, que se proclama um funcionário local: “Tudo: a história minuciosa do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel da Biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia desses catálogos, a demonstração da falácia do catálogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, o comentário desse evangelho, o comentário do comentário desse evangelho, o relato verídico de tua morte, a versão de cada livro em todas as línguas, as interpolações de cada livro em todos os livros; o tratado que Beda pôde escrever (e não escreveu) sobre a mitologia dos saxões, os livros perdidos de Tácito.

O narrador do curta de Resnais, por sua vez, começa por afirmar a razão de existência da Biblioteca Nacional Francesa: ela é uma fortaleza construída para preservar a história do homem, pois “a memória deste é deveras curta”. Inicia-se, então, seguindo as suas palavras, um passeio pelas alas da biblioteca, um gigantesco museu, sistematicamente enumeradas: manuscritos, periódicos, estampas, moedas, mapas. Em seguida, é descrito o penoso trabalho de catalogação de um livro: ele deve ser selecionado, analisado, classificado, numerado até figurar entre as prateleiras. Comenta-se também como acontece a preservação do material e as trocas de mensagens que possibilitam que o livro venha, com precisão, dos obscuros corredores dos acervos até, finalmente, as mãos de um leitor interessado, por sua vez, em disciplinas as mais distintas: astrofísica, fisiologia, teologia, taxonomia, filologia, cosmologia, mecânica, lógica, poesia, tecnologia, em suma, este é o momento onde o livro se abre à mente humana e aos campos infinitos de suas invenções.

Borges lança mão de uma linguagem que adquire contornos matemáticos e aparentemente objetivos. A sua intenção, porém, parece estar em querer lançar o leitor num efeito de suspensão (ou como chamamos antes, de vertigem) à medida que esse leitor, enquanto receptor das informações repassadas cada uma com a mesma dimensão de importância tenta visualizar mentalmente, e, creio eu, raramente com sucesso, como se configuram as “galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro, cercados por balaustradas baixíssimas”, tal como no trecho a seguir: “A distribuição das galerias é invariável. Vinte prateleiras, em cinco longas estantes de cada lado, cobrem todos os lados menos dois; sua altura, que é a dos andares, excede apenas a de um bibliotecário normal. Uma das faces livres dá para um corredor apertado, que desemboca em outra galeria, idêntica à primeira e a todas. À esquerda e à direita do corredor, há dois gabinetes minúsculos. Um permite dormir em pé; outro, satisfazer as necessidades físicas. Por aí passa a escada espiral, que se abisma e se eleva rumo ao mais remoto.

Resnais também lança mão dos recursos do acúmulo de informações e da repetição formal no seu curta-metragem. Os eventos mostrados em sequência incorporam o funcionamento organicista de uma máquina bem oleada, tão bem demonstrado nos planos zenitais e planos gerais onde são vistas pessoas individualizadas fazendo suas respectivas tarefas. O espectador pode se perder nos travellings em corredores estreitos, cujos maiores segredos de organização ainda nos escapem ao fim do filme, pois tratam de toda a complexidade vertiginosa que envolve a preservação de uma cultura ao longo dos séculos. Tanto no conto de Borges quanto no curta-metragem de Resnais nota-se, enfim, a descrição enumerativa e classificatória de dois sistemas complexos, labirínticos, fundamentados, porém, numa ordem que garante a perpetuação de seus componentes, espera-se, à eternidade.

(Publicado em Filmologia, Agosto, 2012)

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

A Parábola do Sr. Empire

Durante a retrospectiva Andy Warhol, na Caixa Cultural-RJ, exibiram Empire, filme de 1964 que mostra por 8 horas o topo do Empire State. Como esperado, poucas pessoas compareceram, e menos ainda ficaram até o final da sessão. Um dos sobreviventes foi um senhor que viu tudo sem dormir e sem ir ao banheiro. Na saída, o curador foi até ele e perguntou o que tinha achado do filme. O senhor respondeu: "É bem longo. Não acontece muita coisa. Não parece o filme do Thor."

O Sr. Empire é o soldado anônimo da crítica de cinema. Praticamente um mestre zen da crítica. Não falou de si mesmo, não falou de política, não colocou o próprio gosto na frente do filme, nem mesmo elogiou ou reclamou. Descreveu de maneira concisa o que o filme é, o que foi a experiência de ver o filme, e ainda fez uma comparação, apontando o que o filme não é. Sem frescura, sem pretensão.

Northrop Frye ficaria orgulhoso.

- Lucas Baptista

Notas sobre A Noite do Demônio


0. Visto no Cinema São Luiz, no Recife, no dia 12 de novembro 2015, data em que Jacques Tourneur completaria 111 anos;

1. O filme começa com uma voz-off afirmando que demônios sempre existiram e sempre existirão;

2. A primeira sequência pós-créditos iniciais do filme nos mostra um homem sendo perseguido por um demônio. O demônio é visto em plano aberto, plano-médio e close: para não haver dúvidas de que ele existe mesmo;

3. Em seguida, o protagonista do filme é apresentado: ele se chama John Holden, um psicólogo americano especialista em desmascarar fenômenos paranormais;

4. Ele viaja de avião dos Estados Unidos para a Inglaterra, do novo para o antigo;

5. Ele tenta dormir na poltrona, cobrindo o rosto com um jornal em que há uma foto sua, como se ele não enxergasse nada além dele próprio: ele é o homem das certezas que se torcem sobre si mesmas;

6. Quando a aeromoça lhe oferece um comprimido para dormir, ele diz que prefere não tomar, porque está "tentando parar com eles";

7. Ele e suas idéias são viciadas (seria coincidência ele ser interpretado por Dana Andrews, um alcoólatra?);

8. Sabemos que o demônio do filme é real porque já nos foi mostrado: somos espectadores do percurso que o protagonista leva até se desprender das velhas idéias e convencer-se disso também;

9. Com exceção de Stonehenge e da cena do funeral, em que há na parede um vitral que assemelha-se a uma cruz, não há símbolos religiosos no filme;

10. "Deixai vir a mim as crianças": o Doutor Karswell demonstra alguns dos seus poderes fazendo mágicas para as crianças, as quais servem de contraponto a John Holden, por não serem incrédulas como ele;

11. O momento-chave do filme é quando John Holden afirma: "Eu não sei". O círculo de ceticismo em que sempre caíam seus pensamentos finalmente é rompido;

12.  O filme encerra com John Holden afirmando: "Maybe it's better not to know";

13. Ele prefere ter uma margem de dúvida a ter certeza sobre tudo. As pessoas que têm certeza sobre tudo estão no hospício, dizia Chesterton.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

O Som e a Fúria (Jean-Claude Brisseau, 1988)


Imaginemos os termos principais do título unidos de outro modo: o som da fúria. Poderíamos considerar tal ruído como um grito, um tiro, o resultado do que começa como uma agitação interior e explode na superfície, podendo modificar o exterior. Este filme é um painel sobre como transformações desse tipo conduzem um mundo antigo ao colapso.

Será testemunha dessas transformações e fio condutor do filme por diferentes espaços (ruas, conjuntos habitacionais do subúrbio parisiense ou a sala de aula de uma professora refratária a esse ambiente hostil) um garoto que na primeira seqüência sobe as escadas para o seu apartamento e se depara com uma fauna distinta de moradores.

Um jovem delinqüente põe fogo nas portas dos vizinhos, os quais tentam a todo custo atacá-lo, até serem interrompidos pelo pai do vândalo, figura imponente que toma para si a tarefa de dar-lhe uma lição. Ao mesmo tempo em que a sua intervenção introduz um meio no qual a violência é parte da rotina, é ela que aporta o resquício de moral que impede, por enquanto, de ser dado o empurrão definitivo em direção à barbárie.

De tudo o que o menino observa, o que mais condensa essas mudanças é a relação desse pai com seus filhos: além do incendiário, existe um mais velho, com vontade de mudar-se para longe do bairro, escolha da qual seu pai zomba por achar que se trata de uma mera ambição por uma vida burguesa e desprezível. Para a nossa surpresa, porém, aquele homem do passado, intransigente como um John Wayne, tem com o filho um diálogo franco. Por trás da sua brutalidade, vemos que existem consciência e limites.

Já o filho mais novo, ao tentar ganhar a atenção do pai, copia dele apenas as explosões enxergadas na superfície, sem a base que as sustentam. Disso decorre a inconseqüência e o absurdo de todas as ações que esse filho pratica: ele tortura um cachorro, ateia fogo à roupa de um mendigo, tenta estuprar a namorada do irmão e, junto com o bando de que faz parte, cogita matá-lo atirando-o a uma fogueira.

Na iminência do fratricídio, o pai surge mais uma vez, espingarda na mão, a tempo de conseguir espantar o bando. Resta apenas o filho mais novo... mas este o mata com um tiro. Aqui é o ponto em que o filme culmina (não à toa, quantos sons ouvimos: a fogueira que arde, o disparo e até o silêncio): falhas de formação do caráter, ciúmes, disputas internas invadem o mundo e têm por conseqüência uma tragédia familiar a qual definirá os rumos das demais pessoas que habitam aquele lugar. Com a morte do pai, os jovens delinqüentes serão os próximos a ditar as regras.

No epílogo após o tour de force, a professora lê uma carta escrita pelo filho mais novo no reformatório, na qual ele se declara arrependido das atrocidades que cometeu. Pensativa, ela encara a noite pela janela, apesar da escuridão não permitir que se veja o horizonte. O mito grego narra que a caixa de Pandora foi fechada a tempo de um último mal não ser liberado: a previdência. Sem ela, os homens desconhecem o futuro. Com ela, seríamos incapazes de ter esperança.

(Publicado em Foco - Revista de Cinema, Dezembro, 2014)

Bravos Guerreiros (John Milius, 1997)


Da prisão, eu trouxe 800 desenhos e 100 roteiros. Eu saí da prisão como outras pessoas saem de Oxford.

Sergei Paradjanov

O anúncio da guerra percorre os vários estratos da sociedade americana e chega à mansão de uma família aristocrática, onde um pai tenta convencer o filho a desistir de ir ao campo de combate. Este lhe responde: “Consegue entender que eu temo mais morrer como um menino rico na sua cama do que nunca saber o que é a fome, o ódio, a dor? Nunca saber o que é a honra ou a coragem? Maldito seja. Eu mereço saber”.

Bravos Guerreiros nos fala do sentimento de onipotência da juventude, da ambição de conquistar o mundo até o ponto onde se percebe que ele não está para brincadeiras. Chegará o momento em que o que se tem a fazer é revirar as fotografias que restaram - como no começo do filme faz um senhor, ex-combatente - e espantar-se: “Meu Deus! Como éramos jovens!”. Uma trama de lembranças começa a se desenrolar.

Assim como a montagem de fotografias dos créditos puxam o novelo da memória, a própria visão de um filme me parece o momento em que os sentimentos que foram comprimidos ao longo da duração do seu material adquirem a sua real dimensão. Astruc escreveu sobre a possibilidade de um espectador ver filmes como quem consulta um arquivo à procura de “críticas literárias, romances, ensaios da matemática, história, variedades”. Para ele, a expressão do pensamento é o problema fundamental do cinema.

Seria possível que víssemos filmes com o intuito de revisitar sentimentos que vivemos, como os de estar apaixonado, ter filhos, visitar o Grand Canyon ou ter oitenta anos? O que é ter dez anos? Serge Daney responderia: O Tesouro do Barba Rubra. O que é sair da casa dos pais rumo ao desconhecido? A resposta poderia ser: Bravos Guerreiros, filme cuja energia é própria do atrito entre o homem e o mundo.

Antes de entregarem-se à batalha, os voluntários passam por treinamentos. Grupo heterogêneo, entre eles há ladrões de diligências, jogadores de polo, índios Sioux (“que mataram o General Custer”), mexicanos e também o general Teddy Roosevelt, responsável pela articulação da guerra a qual se pode dizer que ele inventou para aprender a ser presidente, como há quem saia formado de uma prisão soviética ou de uma grande universidade.

As mudanças pelas quais Roosevelt passa durante o filme são paradigmáticas. No começo, ele é como uma criança excitada por ver de perto um campo de combate, tem um ar ingênuo, manda fazer roupas novas. O filme causa um estranhamento, parece como que “fora do tempo”, e em certa medida pela presença de Roosevelt: nos campos de batalha contemporâneos (isso também serve para a arte) a sua excitação, seu espírito pouco afeito à sobriedade burocrática, seria sem dúvida a primeira das vítimas.

Mais tarde, Roosevelt presenciará a morte de um soldado. A violência desse momento é como um golpe de cinzel na sua alma; faz com que ele silencie e se afaste com os ombros caídos. Milius o filma de costas, vemos as suas mãos indo ao rosto, ouvimos o que parece ser um choro silencioso, contido. Neste épico de formação, Teddy Roosevelt está para Milius como Lincoln esteve para John Ford.

Como no filme de 1939, a aventura se encerra (ou começa) no alto de uma montanha. Ford filmou Henry Fonda trajando a famosa cartola do presidente americano marchando rumo à História após sair de um pequeno vilarejo americano. Milius filma um futuro presidente cercado igualmente pelos homens simples cujos sacrifícios o impulsionaram a crescer. A icônica fotografia tirada nessa cena faz par com a efígie de Lincoln. Depois dela, esses filhos pródigos, enfim, retornam às suas casas, como homens.

(Publicado em Foco - Revista de Cinema, Agosto, 2013)

O Desprezo (Jean-Luc Godard, 1963)


Se há um sentimento que O Desprezo provoca é algo semelhante à tristeza da hora de uma separação. Como os amigos que se despedem no saguão do aeroporto ou o amante que fecha a porta para voltar ao mundo real. O filme em si, se correspondesse de fato a algum desses episódios que alguém pode viver, seria a reprodução em uma hora e quarenta minutos daquele instante em que as pessoas têm de soltar as mãos para irem embora, mas seus dedos permanecem atados.

No contexto do filme, essa “separação” (rompimento) dá-se basicamente em dois níveis: primeiro, o casal (Bardot e Picolli) repentinamente se vê afastado; segundo, 63 foi um ano de inflexão para o cinema: os estúdios da era clássica assistiam às suas derrocadas advindas desde meados dos anos 50, e o cinema moderno afirmava seus novos meios de produção e sua logística de funcionamento.

Há vários sinais que compartilham essa sensação de que algo grande se desmancha: a Cinecittà fantasma, as imposições do produtor (Jack Palance) aos planos criativos do diretor (Fritz Lang), a presença constante da tradutora (Giorgia Moll) que, para que as pessoas se comuniquem, modifica os significados originais das frases logo após elas serem enunciadas e, por fim, o súbito desprazer que o casal sente mutuamente.

Diante disso tudo, podemos cogitar como causa da aflição sentida no filme, e possivelmente por Godard, a seguinte questão: e se tudo aquilo que amamos (cinema, trabalho, carros, a língua, Bardot) for frágil como a paixão de um homem e uma mulher? A sua resposta é reativa: filma-se da forma mais nua possível, sob um sol que se abre sobre os gestos memoráveis dos atores, convertendo-os quase em esculturas, como os heróis dos filmes do diretor homenageado em cena, Fritz Lang.

Afinal, se é isso que se constata (a possibilidade das coisas serem efêmeras), é contra esse fluxo que um cineasta deve lutar. O Desprezo não fala de outra coisa senão da necessidade de capturar, de haver representação enquanto é tempo, mesmo que no horizonte só se vislumbre o ocaso. No final, o ator que interpreta Ulisses olha para o horizonte, em busca de uma Ítaca que sequer está lá: se por acaso tudo sumir, haverá este filme-monumento, testemunho da câmera sobre a transitoriedade da História.

(Publicado em Foco - Revista de Cinema, Julho, 2012)