quinta-feira, 5 de novembro de 2015

O Som e a Fúria (Jean-Claude Brisseau, 1988)


Imaginemos os termos principais do título unidos de outro modo: o som da fúria. Poderíamos considerar tal ruído como um grito, um tiro, o resultado do que começa como uma agitação interior e explode na superfície, podendo modificar o exterior. Este filme é um painel sobre como transformações desse tipo conduzem um mundo antigo ao colapso.

Será testemunha dessas transformações e fio condutor do filme por diferentes espaços (ruas, conjuntos habitacionais do subúrbio parisiense ou a sala de aula de uma professora refratária a esse ambiente hostil) um garoto que na primeira seqüência sobe as escadas para o seu apartamento e se depara com uma fauna distinta de moradores.

Um jovem delinqüente põe fogo nas portas dos vizinhos, os quais tentam a todo custo atacá-lo, até serem interrompidos pelo pai do vândalo, figura imponente que toma para si a tarefa de dar-lhe uma lição. Ao mesmo tempo em que a sua intervenção introduz um meio no qual a violência é parte da rotina, é ela que aporta o resquício de moral que impede, por enquanto, de ser dado o empurrão definitivo em direção à barbárie.

De tudo o que o menino observa, o que mais condensa essas mudanças é a relação desse pai com seus filhos: além do incendiário, existe um mais velho, com vontade de mudar-se para longe do bairro, escolha da qual seu pai zomba por achar que se trata de uma mera ambição por uma vida burguesa e desprezível. Para a nossa surpresa, porém, aquele homem do passado, intransigente como um John Wayne, tem com o filho um diálogo franco. Por trás da sua brutalidade, vemos que existem consciência e limites.

Já o filho mais novo, ao tentar ganhar a atenção do pai, copia dele apenas as explosões enxergadas na superfície, sem a base que as sustentam. Disso decorre a inconseqüência e o absurdo de todas as ações que esse filho pratica: ele tortura um cachorro, ateia fogo à roupa de um mendigo, tenta estuprar a namorada do irmão e, junto com o bando de que faz parte, cogita matá-lo atirando-o a uma fogueira.

Na iminência do fratricídio, o pai surge mais uma vez, espingarda na mão, a tempo de conseguir espantar o bando. Resta apenas o filho mais novo... mas este o mata com um tiro. Aqui é o ponto em que o filme culmina (não à toa, quantos sons ouvimos: a fogueira que arde, o disparo e até o silêncio): falhas de formação do caráter, ciúmes, disputas internas invadem o mundo e têm por conseqüência uma tragédia familiar a qual definirá os rumos das demais pessoas que habitam aquele lugar. Com a morte do pai, os jovens delinqüentes serão os próximos a ditar as regras.

No epílogo após o tour de force, a professora lê uma carta escrita pelo filho mais novo no reformatório, na qual ele se declara arrependido das atrocidades que cometeu. Pensativa, ela encara a noite pela janela, apesar da escuridão não permitir que se veja o horizonte. O mito grego narra que a caixa de Pandora foi fechada a tempo de um último mal não ser liberado: a previdência. Sem ela, os homens desconhecem o futuro. Com ela, seríamos incapazes de ter esperança.

(Publicado em Foco - Revista de Cinema, Dezembro, 2014)

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